Seminário e feira reafirmam diversidade do Vale do Ribeira e o papel das mulheres

Publicado originalmente em 28 de agosto de 2013, em http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/seminario-e...

Evento celebra a luta das mulheres quilombolas na manutenção da agrobiodiversidade, a segurança alimentar, a cultura e reforça a importância da terra para as comunidades

O Grupo de Trabalho da Roça, mobilizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com as Associações Quilombolas do Vale do Ribeira e que conta com a participação do Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo) e do Cepce (Centro de Educação, Profissionalização, Cidadania e Empreendedorismo), realizou em Eldorado (SP), em 23 e 24 de agosto, um seminário e a sexta edição da feira de sementes e mudas. Os eventos contaram ainda com o apoio da Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira), Núcleo Oikos, Fundação Banco do Brasil e prefeituras de Eldorado e de Itaóca.

As mulheres e as roças tradicionais

Denominado “As mulheres quilombolas e as roças tradicionais” o seminário teve duas mesas. A primeira, A luta e organização das mulheres quilombolas pela terra e pela agricultura destacou o papel da mulher para a segurança alimentar na luta pela terra. Neire Alves da Silva, do Quilombo Ivaporunduva, destacou que desde a escravidão a relação com a terra é forte, seja na produção dos alimentos, seja como ponto de resistência e luta. Segundo ela, a juventude precisa estar motivada a continuar essa história, até em outras atividades nas comunidades, como artesanato, turismo e em produções diferenciadas, como a orgânica.

Edvina Silva, a “dona” Diva, do Quilombo Pedro Cubas de Cima, destacou que roça é saúde e que, além de perpetuar o conhecimento tradicional, o diálogo sobre as roças deve servir também para a luta contra o racismo e o preconceito que recai sobre as populações do campo. Maria Madalena, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra de Registro, disse que a reforma agrária, por enquanto, é apenas discurso de governo. A cada ano milhares de trabalhadores são expulsos do campo, mas leva-se muito tempo para que um agricultor seja assentado. “Queria convidar a todos para nos ajudar a preservar o agricultor familiar, que está sendo assassinado dia a dia”.

Cleuza, Márcia e Georgina trabalham no planejamento e distribuição de produtos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) em Eldorado, e destacaram a boa qualidade das hortaliças e frutas que chegam das comunidades quilombolas. “A gente se sente feliz por distribuir os alimentos naturais”, disse Cleusa, destacando que a produção que chega dos quilombos não utiliza agrotóxicos, e, por conta disso, é mais saudável.

A professora Cristina Adams, da USP/Leste, coordenadora do grupo que há dez anos pesquisa o sistema agrícola das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, disse que o modelo de produção extensiva, com largo uso de agrotóxicos, não prejudica apenas o pequeno produtor, mas toda a população, que irá consumir esses alimentos. O trabalho por ela desenvolvido produz informações que contribuem para a valorização das roças e seu papel positivo para a conservação da biodiversidade. Cristina afirmou ainda que a mudança dos padrões alimentares aconteceu sem uma reeducação, refletindo no aumento de problemas de saúde, como obesidade, hipertensão, diabetes e câncer.

O Licenciamento das Roças

Este foi o tema da segunda mesa, na qual o pesquisador Alexandre Ribeiro Filho, da USP, apresentou a pesquisa que está desenvolvendo, de identificação da dinâmica do solo em um ciclo completo de roça de coivara, em áreas experimentais nos quilombos São Pedro e Pedro Cubas de Cima. Para ele, o papel das roças em uma região como o Vale do Ribeira é importante para a biodiversidade, pois alia produção e conservação. Os territórios quilombolas têm, em média, 80% de cobertura florestal, servindo como uma zona de amortecimento para as dezenas de Unidades de Conservação existentes.

A presidente do ISA, Neide Esterci, disse que ao ouvir os relatos recordou de sua experiência com comunidades tradicionais na região do Araguaia, onde os agricultores familiares tiveram suas terras tomadas por grandes empresários do Sul e Sudeste, mas, com apoio de parceiros, tiveram momentos de resistência. Ressaltou também a relação entre antropólogos e seringueiros no Acre, discutindo formas de uso e ocupação dos territórios unindo a conservação dos recursos naturais e a produção tradicional nas roças e a atividade da borracha, que resultaram em áreas as Reservas Extrativistas (Resex) e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), unidades que existem também no Vale do Ribeira.

Aurico Dias, do Quilombo São Pedro, questionou o fato de, mesmo os quilombolas sendo detentores do conhecimento sobre seus territórios ao longo de 300 anos, precisarem de licença de técnicos de fora para indicarem quais áreas devem ser plantadas. Osvaldo dos Santos, do Quilombo Porto Velho, completou que a demora no reconhecimento das comunidades tem levado as famílias ao desespero, e que o Incra e a Secretaria do Meio Ambiente deveriam se empenhar mais para a resolução desses conflitos, visto que aos quilombolas restam os impedimentos.

Edgard Amaral, do Incra/SP, afirmou que há empenho para que o instituto amplie suas parcerias e equipe para dar conta das demandas apontadas pelos quilombolas, como o reconhecimento e titulação de áreas. As críticas devem ser feitas, e a agenda apresentada neste seminário e nas conversas com as comunidades devem ser levadas para dentro do Incra, para que a pauta da sustentabilidade seja inserida. Marcelo Bento, do Itesp, e Mayra Jankowsky, da Fundação Florestal, disseram que vêm discutindo com a Cetesb uma solução para a liberação das roças tradicionais. Para as comunidades inseridas em Unidades de Conservação, a elaboração do Plano de Manejo poderia ser um caminho para a permissão das roças.
Dona Elvira, do Quilombo São Pedro, questionou como um empreendimento como uma barragem, que destrói a natureza, as cavernas e o território, consegue autorização, e as roças, que garantem a segurança alimentar e a saúde, esbarram em tanta burocracia e não conseguem licenciamento. Setembrino, do quilombo de Ivaporunduva desabafou: “A gente precisa rever isso aí. A gente sabe que tem leis que protegem nossa comunidade, mas as coisas não têm sido feitas. A gente precisa reconhecer essas comunidades. O INCRA precisa acelerar esse processo. Quando a gente fala de terra para pobre e preto, o governo não vai. Precisamos avançar mais. Quando vem um fazendeiro e roça milhares de hectares nada acontece, mas quando nós vem com um pau para plantar uma mandioca, o Cetesb vem em cima de nós”.

Feira atrai quilombolas e expositores

Manhã de sábado em Eldorado, e a movimentação tem início na praça principal da cidade. Barracas, mesas e, de repente, surgem caixas com diversos produtos vindos das comunidades quilombolas: milho, feijão, arroz, mandioca, cana, diferentes qualidades de cada produto, com cores e texturas variadas.

A VI Feira de Troca de Sementes e Mudas Quilombolas, evento que já se tornou tradicional na região, é o momento de celebração que mostra a riqueza do que é produzido nas roças e a importância da conservação da agrobiodiversidade, como instrumento de segurança alimentar e preservação da cultura. Nas barracas, muitas mudas e sementes, fruto de trocas feitas em edições anteriores, mostrando a importância do evento.

Produtos beneficiados também foram comercializados pelas comunidades, vários deles como resultado da organização social dos quilombolas, como a banana frita da agroindústria do Quilombo Nhunguara. Vandir dos Santos, que tinha em sua barraca mel e própolis produzidos na Unidade de Beneficiamento do Quilombo Porto Velho, disse que “naqueles potes, além de um produto puro e natural, está também a luta pelo território e o trabalho comunitário”. Seu irmão, Osvaldo, considera que esses produtos precisam ser incorporados na lista de comercialização da Cooperquivale, cooperativa criada no ano passado para articular a distribuição da produção dos quilombolas da região.

Apresentações culturais animaram a feira ao longo da manhã. O Grupo Cultural do Quilombo Sapatu apresentou a Nhá Maruca, dança tradicional onde os homens conduzem o ritmo do bailado com a batida de seus tamancos. Jovens da Associação Desportiva Cultural de Capoeira Nossa Senhora da Guia (ADECC), vários deles vindos das comunidades quilombolas Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, gingaram na praça, agitando o público que transitava pelo local. Para fechar o evento, o Grupo Raízes, do Quilombo Ivaporunduva, cantou e tocou modas de viola. O prefeito de Eldorado, Eduardo Fouquet, esteve na feira e disse que o evento deveria integrar o calendário oficial de festividades do município, o que poderia ampliar sua visibilidade e apoio para realização.

Marcos Gamberini, agrônomo e responsável por parte da equipe do ISA na organização da feira, ressaltou que o evento precisa ser cada vez mais solidário, reduzindo os custos e possibilitando maior participação das comunidades. “Precisamos garantir autonomia à feira e fomentar a solidariedade em todo o processo, inclusive no transporte e na alimentação dos participantes. Precisamos também ir além da troca e venda, como criar um banco de sementes, por exemplo”.

A cada ano, a feira se amplia, e já não se restringe aos quilombos e nem ao Vale do Ribeira. Nesta edição, estavam participantes de movimentos de agricultura urbana de São Paulo e Serra Negra, quilombolas de São Roque, além da aldeia guarani Itapumirim, de Registro.

O cacique Euzébio Peralta exaltou a conservação das sementes para o fortalecimento da cultura, pois nelas estão as tradições, a língua e as relações entre as comunidades. “Os guarani perderam muito de suas sementes. Troquei variedades aqui na feira que, se me faltarem um dia, sei que poderei encontrar com um irmão quilombola ou caiçara, porque eles estão levando sementes guarani com eles”.

Texto: Ivy Wiens/ISA
Fotos: Deborah Mello/ISA

Imagem: